Friday, May 24, 2013

A Insondabilidade do Amor Pós-Moderno

A Modernidade, assim que transpôs os estreitos muros da racionalidade religiosa e dos pressupostos naturalísticos que a pariram, proclamou a sua capacidade de reformular a organização social segundo os seus próprios cânones. Libertou os afectos dos indivíduos e submeteu-os à interpretação subjectiva, pretendendo não estabelecer padrões de licitude moral nas relações entre os homens. À política (indirectamente através da submissão desta a uma proposta ou autoridade moral) ficou vedada a possibilidade de reflectir sobre as licitudes dos afectos, sobre os fundamentos da vida comum dos que à comunidade pertencem. O igualitarismo fez o resto e homem moderno passou a crer que não só os seus afectos não poderiam ser sindicados pela comunidade, como teriam de ter igual reconhecimento pela comunidade. Como sempre na pós-modernidade as categorias de libertação modernas foram a única coisa que não foi devidamente desconstruída e, por isso, se ficou com um conjunto de figuras conceptuais-espectrais, que denotam o exemplo mais acabado da wasteland moral do nosso tempo. Por um lado, ao estilo do moderno subjectivismo, toda a gente tem “direito a uma família”. Mas também toda a gente tem “direito a definir e procurar o seu modelo de família”. Em suma, toda a gente tem um direito a ter algo que o próprio se ocupará de definir o sentido. Um casal homo-pan-trans-sexual, um agrupamento poligâmico, tem direito a escolher e a ver reconhecida legalmente a sua concepção de família. Mas aqui falta explicar porque é que tem sequer de haver conjugalidade ou sexualidade envolvida. Porque é que a libertação do modelo familiar não pode emancipar-se das concepções de conjugalidade (que no fundo são meras emanações do paradigma religioso) e transformar-se realmente em algo puramente livre? O grupo de swingers da Avenida da Boavista, a comunidade de amor-livre da tenda 4 do Boom Fest, ou o Grupo Excursionista e Recreativo do Parque de Campismo da Costa da Caparica, são aglomerações humanas com tanta dignidade e insondabilidade de afectos como outra qualquer. Deverão ver reconhecida a sua relação, como outras quaisquer, tendo assim possibilidade de casar, adoptar e de ser reconhecidos como núcleo essencial de vida e educação.
Falta explicar uma coisa no meio de tudo isto. Se essas formas de vivência comum são todas lícitas e se não pode escolher entre formas de vida em comum, no que é que a adopção é melhor que a institucionalização das crianças? A solução para as crianças órfãs seria a sua adopção pelas instituições que as acolhem. O que é claramente um contra-senso.

1 comment:

  1. Corcunda, que saudades!

    Nem sabe com que carinho (se m'o permite!) o volto a ler, após tantos anos (ainda sou do tempo do auge do "Pasquim"). Pensei até que havia perdido o bálsamo desta razão temperada e culta no turbilhão do nosso caos contemporâneo. Espero que nos (Universo) brinde ainda com esse senso e gosto por largos anos.

    Dito isto, ao que aqui escreve: poderemos pôr a questão nestes termos? Fará sentido chamar família ou conjugalidade a uniões civis, quando estas ultrapassam a matriz do transgeracional, do criador, do supra-indivíduo?
    Mais: será amor? Será amor o que estes sentem? No "Banquete", se hoje se passasse, encontraríamos nós algo mais que não o Eros, o efémero, o físico, o práctico?

    Não sujeitámos, talvez por omissão, e antes de tudo isto se suceder, hac ora, todas as construções conceptuais de "família", "amor", "Sociedade", "educação" a um desconjuntado amontoado de costumes sem conteúdo? Que sabem os jovens de hoje ou mesmo alguns validos do que implicam estes valores per se, mais que direitos, como responsabilidades?

    Outro dia escutava o Professor Adriano Moreira acerca d' estes assuntos e lá teimou o mesmo no "eixo", à volta do qual as incertezas morais (de que imanam e imanarão as éticas, repare-se na inversão do desejável), mesmo que evidentes, terão que ceder. Mas duvido que para parte considerável das massas (ou melhor da Humanidade, que o mal é comum às elites) se possa ainda identificar o tal "eixo". O interesse da ordem estabelecida fixa-se no imediatismo, no fácil, no agradável, no "comprável". Que destino, ó Jano, se só te querem sorrindo?

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