Friday, May 31, 2013

O Estranho Jusnaturalismo do Sucedâneo Neoconservador

Com tanta boa vontade que tenho, hoje em dia, de encontrar réstias de esperança nos locais mais improváveis, foi com algum entusiasmo que tresli este texto do Henrique Raposo sobre a forma como o Conservadorismo ou radica em concepções mais profundas do cosmos, ou nada tem a dizer sobre o Homem. É fácil perceber o meu entusiasmo. Depois de ler páginas e páginas de artigos absurdos e contraditórios da lavra do rapaz (o Pasquim está cheio dos meus esgares de dor a este respeito), a possibilidade de haver um articulista aceite pelas nações civilizadas, com mais ou menos a minha idade, capaz de perceber que todas as ideias estão ancoradas em princípios metafísicos, dar-me-ia uma sensação de companhia e de esperança que há muito se extinguiu. Contudo, assim que me detive no que está escrito no texto, a esperança de um Henrique Raposo desperto para as subtilezas da filosofia política, apagou-se. É fácil ver porquê.
HR apresenta duas versões para o que pode ser o Conservadorismo.
Uma, que tem base historicista e que fecha o “dever ser” no conjunto de tradições sociais e comunitárias do grupo, sobre a qual a tradição é inquestionável, mas que, ao bom estilo da neutralidade moderna, é incapaz de encontrar nessa mesma tradição um valor cogente face a todas as outras. Esta forma, como já escrevi a propósito da primeira fase do pensamento do António Sardinha (noutros carnavais), é eminentemente moderna e pode ser encontrada em autores do idealismo alemão, em Eliot, em Oakeshott e em pilhas dos seus sucedâneos não tão bem sucedidos, tão anglo-saxónicos como os demais.
Outra, o jusnaturalismo, em que Burke se funda para defender os princípios inalienáveis do Direito Natural. Esta concepção significa que o que há a conservar é uma concepção de justiça que se encontra acima do tempo. Até aqui a coisa vai surpreendentemente bem, à excepção do disparate evidente de deixar entender que o idealismo alemão e o reacionarismo francês são um reacionarismo e um vitalismo. E é por aí que se pode medir o tamanho do equívoco do HR.
Nessa massa informe que HR entende por reacionarismo francês, há um conjunto de autores que são jusnaturalistas clássicos. E o único que não é jusnaturalista, não é francês (DeMaistre). Em particular Louis de Bonald atacou o liberalismo e a democracia por fazerem coincidir o horizonte político e moral, ou seja, fez uma apologia de uma concepção metafísica clássica contra a subversão metafísica liberal. E no entanto HR apresenta-nos uma história de bons (jusnaturalistas) e maus (historicistas, vitalistas e outros bandalhos) em que o liberalismo se apresenta como espetacular ponto culminante da existência humana. O que é que está mal neste filme?
Como é evidente, os argumentos que se opõem após a Revolução Francesa não são o reacionarismo positivista contra o liberal direito natural (como HR observa caricatural e boçalmente), mas várias concepções do que é o Natural, ancoradas em visões religiosas ou metafísicas específicas. E o disparate é mais evidente assim que se descobre, com atenção, o pensamento deste fantástico pensador (que já tem uma data de livros escritos). Diz HR que “A direita anglo-saxónica casou-se com a transcendência do Direito Natural. A direita continental casou-se com a imanência da História. Como sabes, estarei sempre com a primeira. ”. Esquece-se apenas de referir que, da direita anglo-saxónica (a confusão entre direita e conservadorismo salta à vista) o único jusnaturalismo que sobrou até ao século XIX foi o liberal. E no século XX nem isso, como provam todas as histórias do conservadorismo de Kirk a Eccleshall. Hayek, Buchanan e até Nozick, assim como os restantes neoliberais do pós-guerra, põem o prego final no caixão do jusnaturalismo liberal clássico, que no século XX não tem um autor que se apresente. Apenas um conjunto de políticos a negociar princípios liberais no domínio da economia. De jusnaturalismo, nem sombra.
Mas pior que este “western spaghetti” da filosofia política é o que HR nos diz sobre o que pensa. Diz que “O conservador está ligado à ética ou religião do Direito Natural”. Religião do Direito Natural? Percebe-se logo o que isso é… O jusnaturalismo é uma ideia que parte da concepção do cosmos, do sentido do mundo, para determinar o que é lícito e ilícito, o que aproxima e afasta o Homem do seu Ser. HR apresenta o Direito Natural como uma concepção que determina o que é a ética e a religião. Genial! O único problema é que não faz sentido. Uma religião construída para ir ao encontro das finalidades políticas, ao anseio de alguém em ser liberal, é uma forma oposta ao jusnaturalismo, o Positivismo. Ao longo de todo o texto e ao contrário do que seria de esperar num escrito jusnaturalista, nenhum argumento superior ao liberalismo (uma forma política) é aduzido. O HR gosta do liberalismo, aprecia-lhe a “jusnaturalice”, o carácter transcendente. Mas esquece-se que o mesmo origina em concepções que transcendem o próprio liberalismo (é esse o propósito de se ser liberal), senão torna-se o seu inverso.
Foi isso mesmo que Burke escreveu nas suas Reflexões e aparentemente uma das muitas coisas que HR não percebeu na obra. O liberalismo, enquanto conceito autónomo de uma tradição civilizacional, é uma ideia vazia. E o HR defende isto. E o seu contrário.
Leiam o HR para não repetirem os seus disparates.

2 comments:

  1. :) Já tinha saudades de ler um desses postais que nos fazem voltar atrás " n " vezes!
    Aprender é um alimento que me é essencial. Bem-haja.

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  2. Anonymous3/6/13 21:58

    A propósito do direito natural para os tempos de hoje:

    Insuperable problems arise when—in part out of a
    commendable desire to speak to secular society in ways it can understand,
    in part out of some tacit quasi-Kantian notion that moral philosophy must
    yield clear and universally binding imperatives—the natural law theorist
    insists that the moral meaning of nature should be perfectly evident to any
    properly reasoning mind, regardless of religious belief or cultural
    formation. (...)
    “Nature”, however, tells us nothing of the sort, at least not in the form of clear commands; neither does it supply us with hypotaxes of moral obligation. (...)
    We cannot talk intelligibly about natural law if we have not
    all first agreed upon what nature is and accepted in advance that there really is a necessary bond between what is and what should be. (...)

    To put the matter very simply, belief in natural law is inseparable from the
    idea of nature as a realm shaped by final causes, oriented in their totality
    toward a single transcendent moral Good: one whose dictates cannot simply
    be deduced from our experience of the natural order, but must be received
    as an apocalyptic interruption of our ordinary explanations that
    nevertheless, miraculously, makes the natural order intelligible to us as a
    reality that opens up to what is more than natural.
    There is no logically coherent way to translate that form of cosmic moral
    vision into the language of modern “practical reason” or of public policy
    debate in a secular society. Our concept of nature, in any age, is entirely
    dependent upon supernatural (or at least metaphysical) convictions.

    In: D.B. Hart, Is, Ought, and Nature's Laws
    www.firstthings.com/article/2013/02/is-ought-and-natures-laws-1

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