Com tanta boa vontade que tenho, hoje em dia, de encontrar réstias de esperança nos locais mais improváveis, foi com algum entusiasmo que tresli este texto do Henrique Raposo sobre a forma como o Conservadorismo ou radica em concepções mais profundas do cosmos, ou nada tem a dizer sobre o Homem. É fácil perceber o meu entusiasmo. Depois de ler páginas e páginas de artigos absurdos e contraditórios da lavra do rapaz (o Pasquim está cheio dos meus esgares de dor a este respeito), a possibilidade de haver um articulista aceite pelas nações civilizadas, com mais ou menos a minha idade, capaz de perceber que todas as ideias estão ancoradas em princípios metafísicos, dar-me-ia uma sensação de companhia e de esperança que há muito se extinguiu. Contudo, assim que me detive no que está escrito no texto, a esperança de um Henrique Raposo desperto para as subtilezas da filosofia política, apagou-se. É fácil ver porquê.
HR apresenta duas versões para o que pode ser o Conservadorismo.
Uma, que tem base historicista e que fecha o “dever ser” no conjunto de tradições sociais e comunitárias do grupo, sobre a qual a tradição é inquestionável, mas que, ao bom estilo da neutralidade moderna, é incapaz de encontrar nessa mesma tradição um valor cogente face a todas as outras. Esta forma, como já escrevi a propósito da primeira fase do pensamento do António Sardinha (noutros carnavais), é eminentemente moderna e pode ser encontrada em autores do idealismo alemão, em Eliot, em Oakeshott e em pilhas dos seus sucedâneos não tão bem sucedidos, tão anglo-saxónicos como os demais.
Outra, o jusnaturalismo, em que Burke se funda para defender os princípios inalienáveis do Direito Natural. Esta concepção significa que o que há a conservar é uma concepção de justiça que se encontra acima do tempo. Até aqui a coisa vai surpreendentemente bem, à excepção do disparate evidente de deixar entender que o idealismo alemão e o reacionarismo francês são um reacionarismo e um vitalismo. E é por aí que se pode medir o tamanho do equívoco do HR.
Nessa massa informe que HR entende por reacionarismo francês, há um conjunto de autores que são jusnaturalistas clássicos. E o único que não é jusnaturalista, não é francês (DeMaistre). Em particular Louis de Bonald atacou o liberalismo e a democracia por fazerem coincidir o horizonte político e moral, ou seja, fez uma apologia de uma concepção metafísica clássica contra a subversão metafísica liberal. E no entanto HR apresenta-nos uma história de bons (jusnaturalistas) e maus (historicistas, vitalistas e outros bandalhos) em que o liberalismo se apresenta como espetacular ponto culminante da existência humana. O que é que está mal neste filme?
Como é evidente, os argumentos que se opõem após a Revolução Francesa não são o reacionarismo positivista contra o liberal direito natural (como HR observa caricatural e boçalmente), mas várias concepções do que é o Natural, ancoradas em visões religiosas ou metafísicas específicas. E o disparate é mais evidente assim que se descobre, com atenção, o pensamento deste fantástico pensador (que já tem uma data de livros escritos). Diz HR que “A direita anglo-saxónica casou-se com a transcendência do Direito Natural. A direita continental casou-se com a imanência da História. Como sabes, estarei sempre com a primeira. ”. Esquece-se apenas de referir que, da direita anglo-saxónica (a confusão entre direita e conservadorismo salta à vista) o único jusnaturalismo que sobrou até ao século XIX foi o liberal. E no século XX nem isso, como provam todas as histórias do conservadorismo de Kirk a Eccleshall. Hayek, Buchanan e até Nozick, assim como os restantes neoliberais do pós-guerra, põem o prego final no caixão do jusnaturalismo liberal clássico, que no século XX não tem um autor que se apresente. Apenas um conjunto de políticos a negociar princípios liberais no domínio da economia. De jusnaturalismo, nem sombra.
Mas pior que este “western spaghetti” da filosofia política é o que HR nos diz sobre o que pensa. Diz que “O conservador está ligado à ética ou religião do Direito Natural”. Religião do Direito Natural? Percebe-se logo o que isso é… O jusnaturalismo é uma ideia que parte da concepção do cosmos, do sentido do mundo, para determinar o que é lícito e ilícito, o que aproxima e afasta o Homem do seu Ser. HR apresenta o Direito Natural como uma concepção que determina o que é a ética e a religião. Genial! O único problema é que não faz sentido. Uma religião construída para ir ao encontro das finalidades políticas, ao anseio de alguém em ser liberal, é uma forma oposta ao jusnaturalismo, o Positivismo. Ao longo de todo o texto e ao contrário do que seria de esperar num escrito jusnaturalista, nenhum argumento superior ao liberalismo (uma forma política) é aduzido. O HR gosta do liberalismo, aprecia-lhe a “jusnaturalice”, o carácter transcendente. Mas esquece-se que o mesmo origina em concepções que transcendem o próprio liberalismo (é esse o propósito de se ser liberal), senão torna-se o seu inverso.
Foi isso mesmo que Burke escreveu nas suas Reflexões e aparentemente uma das muitas coisas que HR não percebeu na obra. O liberalismo, enquanto conceito autónomo de uma tradição civilizacional, é uma ideia vazia. E o HR defende isto. E o seu contrário.
Leiam o HR para não repetirem os seus disparates.